cover.jpg
portadilla.jpg

 

 

Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2007 Michelle Styles

© 2014 Harlequin Ibérica, S.A.

A amante do viking, n.º 193 - Fevereiro 2014

Título original: Taken by the Viking

Publicada originalmente por Mills & Boon®, Ltd., Londres

Publicado em português em 2009

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), feitos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

® e ™ são marcas registadas por Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas em que aparece ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-5028-6

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

Um

 

8 de Junho de 793

Lindisfarne, Northumbria

 

Annis apertou os lábios, tentando não mexer a cabeça, enquanto a sua empregada lhe entrançava o cabelo. O que tinha esperado, na verdade? Que o seu tio, o abade do priorado de Saint Cuthbert, lhe desse dinheiro para enfrentar o seu padrasto? A única opção que tinha sugerido fora a de se juntar à igreja. Ela poderia ter uma boa posição, desde que levasse o seu dote com ela.

Milady, demoraremos menos se inclinar ligeiramente a cabeça para este lado.

Annis olhou para a parede da casa de hóspedes de Saint Cuthbert, com o seu mural da Virgem Maria ajoelhada aos pés da cruz, e concentrou-se na imagem.

Fora um erro vir até ali. A conversa da noite anterior ainda se repetia na sua cabeça. O seu tio recusara-se a ouvir os seus argumentos. Porque lhe teria ocorrido que o faria?

Deixaria o mosteiro e a ilha no dia seguinte, quando a maré estivesse baixa, quando pudesse atravessar a ponte. Foi o que Annis decidiu. Teria de regressar a sua casa em Birdoswald, no rio Irthing, no oeste de Northumbria. E ali enfrentaria o futuro à sua maneira.

– Parece-lhe bem assim, milady?

A sua nova empregada, Mildreth, acabou de lhe entrançar o cabelo e entregou-lhe um pequeno espelho. A sua cabeleira castanha, encaracolada e indomável, estava apanhada em duas tranças cuidadas. Annis considerava que o seu cabelo era a sua melhor característica, talvez a sua única qualidade destacável, embora parecesse ter vontade própria. Mildreth sabia o que fazia, mas Annis recusava-se a confiar nela.

O seu padrasto tinha obrigado a que todos os seus empregados fossem substituídos depois de o marido de Annis ter morrido e a que ela voltasse para as terras da família. Não havia nenhuma razão para que ela ficasse com a família de Selwyn. Não tinha filhos e a sua cunhada sempre tinha tido ciúmes dela. Assim, tinha regressado, esperando uma recepção melhor, mas tinha descoberto que o seu padrasto tinha o controlo das terras da família.

– Em breve, organizaremos o seu casamento.

– Se Deus assim o quiser... – Annis deixou o espelho sobre o toucador e mostrou-se desanimada. Não tinha intenção de se casar com o filho do seu padrasto, o detestável Eadgar, com as mãos húmidas e umas maneiras repugnantes. Também não tinha intenção de se retirar para um convento, como o seu tio lhe tinha sugerido. Tinha de haver outra solução.

– Terá de se casar um dia. Eadgar é um bom... – Mildreth parou e a sua expressão tornou-se aflita. – Milady, não posso mentir. Afeiçoei-me a si. Eadgar é terrível. Todas as empregadas receiam ficar sozinhas com ele. Por favor, não diga nada.

Annis pegou na mão de Mildreth. Um ténue tom rosado tingiu as faces da empregada, tornando-a quase bonita. Annis sentiu-se mais feliz do que se sentira em semanas. A sua viagem a Lindisfarne não tinha sido em vão. Tinha descoberto uma aliada, se é que podia chamá-la assim.

– Partilhamos a mesma opinião sobre Eadgar.

– Disseram-me que era muito amável, milady, e é.

– É demasiado cedo para falar sobre voltar a casar-me – Annis pôs o colarinho do vestido. – Acabámos de enterrar o meu marido. Haverá tempo para falar sobre casamento depois de ter deixado de chorar pela sua morte. Vim aqui em busca do conselho do meu tio e, agora que já o recebi, regressarei ao meu lar.

– Como queira, milady.

Os sinos tocaram e o ruído repentino e forte ecoou no quarto, acabando com todos os pensamentos e palavras. Todas as fibras do corpo de Annis ficaram tensas.

– Estão a atacar-nos! Vão matar-nos nas nossas camas!

Annis respirou fundo. Apesar do som estridente dos sinos, tinha de manter a calma. Podia ser qualquer coisa. O pânico não a ajudaria em nada.

– Um ataque? Mildreth, não deves deixar que o medo se apodere de ti. Quem se atreveria a atacar este lugar? – tentou que a sua voz soasse com normalidade. Annis não estava muito certa de quem estava a tentar convencer, se a sua empregada ou ela mesma. – Os sinos estarão a tocar por outra razão. Um peregrino terá avaliado mal a maré e estará preso na ponte.

Mildreth ofereceu-lhe um sorriso trémulo e inclinou a cabeça, enquanto os sinos continuavam a repicar. Annis rezou para que as palavras que acabava de pronunciar fossem verdadeiras. Tinham de ser. Quem se arriscaria a uma condenação eterna por atacar uma das congregações mais sagradas e eruditas de Northumbria, para não dizer de toda a Europa?

A protecção que aquele lugar oferecia era a razão pela qual a sua família tinha preferido que os monges guardassem a maior parte do seu dinheiro, em vez de o terem na sua casa, em arcas com cadeado. A grande maioria dos proprietários de terras de Northumbria empregava esse modo simples, mas eficaz, de garantir que o dinheiro estava completamente a salvo.

Mas então, tal como os sinos tinham começado a tocar de maneira repentina, pararam. O silêncio foi ensurdecedor.

– Não deve ser nada – a voz de Annis ecoou nas paredes de madeira. – Um barco deve ter ficado encalhado e um monge assustou-se. O meu tio diz que alguns dos monges novos ficam nervosos com muita facilidade. O que quer que tenha sido já deve ter-se resolvido.

– Como queira, milady.

Mildreth assentiu, mas a sua cara fina mostrava uma expressão aflita. Annis estendeu o braço e acariciou-lhe a mão.

– Está tudo bem, Mildreth. Estamos na casa de Deus. Ele cuidará de nós.

– Houve augúrios – disse Mildreth, antes de baixar a voz. – Um dos monges disse que viu dragões a voarem diante da Lua. E fogos estranhos durante a noite. Redemoinhos de ar no céu. Alguma coisa para nos castigar pelo nosso comportamento perverso e pecaminoso. Ontem, estavam a falar disso no quarto anexo à cozinha do abade.

– São histórias para assustar as jovens empregadas, sem dúvida – Annis soltou uma gargalhada inquieta. – Quando celebrarmos a festa de São Miguel, depois da colheita, ninguém se lembrará disso. As coisas são assim.

Annis levantou-se e atravessou o quarto em direcção à pequena janela que dava para o mar. No dia anterior, tinha admirado a areia clara e amarela, e a água brilhante e resplandecente, vazia, à excepção de alguns navios pesqueiros. No entanto, naquele dia tinha diante de si uma imagem completamente diferente.

– Talvez me tenha enganado, Mildreth. O mosteiro tem companhia – Annis tentou que a sua voz não reflectisse o medo que sentia. Não devia precipitar-se. Estava muito nervosa e a sua imaginação não parava de andar às voltas, como já lhe dissera o seu tio em várias ocasiões.

O sol da manhã lançava reflexos sobre a água, mas o mar já não estava vazio. Três barcos com serpentes nas suas proas, escudos redondos de lado e velas às riscas vermelhas e brancas estavam na baía pouco profunda. Um parara à beira da água, enquanto os outros o seguiam de perto.

Annis viu os guerreiros a desembarcarem do primeiro barco, atravessando as ondas. Estavam vestidos com calças e coletes de cota de malha, com os seus capacetes e escudos redondos. Um ar de fúria rodeava-os. Nenhum estava vestido de forma diferente. Infiéis. Pagãos. Assaltantes.

Annis espreitou pela janela para ver melhor. O líder tinha o cabelo preto pela altura dos ombros e uma barba de vários dias. O seu escudo tinha a imagem de uma serpente e de animais selvagens em plena luta. Os guerreiros que o seguiam iam desde um homem feroz, com uma cabeleira comprida e solta, e barba, até uma versão mais magra e mais loira. O chefe olhou para a janela. O olhar azul surpreendente ficou fixo em Annis durante o que durou um batimento do seu coração. Um breve sorriso delineou-se nos lábios dele enquanto se virava para receber o grupo que corria do mosteiro. Annis levou a mão ao pescoço.

Tê-la-ia visto?

O seu tio estava de pé diante do grupo, com o seu hábito branco, mais alto do que o resto, mas não tanto como o chefe bárbaro, e com um ar de segurança e de comando. Annis sorriu levemente. Enganara-se ao preocupar-se. A habilidade do seu tio como político era conhecida em Northumbria e Mercia. Ela estava certa de que lidaria com aqueles guerreiros infiéis.

O seu tio estendeu a mão para que lha beijassem, como era tradição. O chefe pagão ignorou-a e inclinou a cabeça, antes de entregar uma tábua ao seu tio.

O rosto do seu tio empalideceu e a sua mão começou a tremer. O que quereriam aqueles bárbaros?

 

 

Haakon Haroldson observava o abade. A tábua que lhe tinha mostrado era bastante clara. Certificara-se disso ao incomodar-se a lê-la, depois de o escriba de Oeric, o Escocês, ter redigido o que lhe tinham pedido. E depois ele próprio tinha-lhe posto o selo de Oeric.

O felag, aquele grupo de homens, tinha vindo buscar as moedas de ouro que lhes deviam. Se, entretanto, pudessem negociar ou proporcionar alguma medida de protecção enquanto estivessem ali, ainda melhor. Mas ninguém brincava com eles.

A viagem daquele Verão estava a gerar-lhes benefícios importantes. O novo desenho dos barcos tinha resultado: roçavam a superfície do oceano ao mesmo tempo que ganhavam velocidade. Os escoceses desejavam as peles espessas de animais dos vikings e as suas contas de âmbar.

Tinham de encerrar aquele assunto. Depois, navegariam de volta para casa com honra.

– Viemos aqui por causa do dinheiro que Oeric, o Escocês, nos deve.

O abade arqueou um sobrolho.

– Estou surpreendido por um homem do Norte falar latim.

– Somos comerciantes. Aprendemos as línguas à medida que precisamos delas – Haakon manteve o seu olhar fixo num ponto acima do ombro do abade. Não havia necessidade de lhe contar a história da sua vida, não ainda. Mais tarde, talvez o fizesse, quando tudo se tivesse resolvido e estivessem a desfrutar de um copo de hidromel juntos. Ele estendeu as mãos, com as palmas para cima. – Vamos em paz. Só queremos o que nos prometeu.

– Como posso saber que esta tábua é verdadeira?

– Duvido que tivéssemos chegado até aqui se não fosse.

– Ouvi falar de ataques do vosso lado contra lugares indefesos.

– Seriam outros comerciantes. Não fomos nós. Nós viemos fazer um negócio, não viemos fazer guerra – Haakon permitiu-se um sorriso. – Embora, se fosse necessário, vos oferecêssemos protecção.

– Esta é a casa de Deus. Aqui, não temos nenhuma necessidade de protecção.

Haakon sentiu-se agradecido por nem o seu meio-irmão, Thrand, nem o seu remador chefe, Bjorn, saberem latim. Já fora suficientemente difícil convencer Bjorn a tentarem negociar pelas vias da paz. Havia muito potencial para estabelecer um bom comércio com Northumbria, mas, de igual modo, muitos perigos. Os habitantes de Northumbria eram conhecidos por serem guerreiros habilidosos. Haakon olhou para o enorme guerreiro berserker que estava de pé ao seu lado. Muitos teriam dito que o lugar de Bjorn era no barco, mas ele queria-o ali, caso houvesse algum problema.

Bjorn ficou tenso e abriu as narinas. O que sentiria o seu velho amigo? Haveria valquírias na brisa, à espera de levar com elas algum guerreiro cansado na batalha? Haakon preferiu não fazer caso daquele pensamento.

– Viemos em paz – voltou a dizer Haakon, com um tom de voz firme.

Os monges podiam parecer fracos, mas ele estava certo de que o mosteiro estaria bem protegido. Como não haveria de estar? Tinha ouvido histórias sobre as suas riquezas magníficas e os conhecimentos enormes que guardava. Certamente, os seus homens e ele não seriam os primeiros a sentirem-se tentados, mas não tinha guerreiros suficientes para um assalto prolongado. Tinham perdido muitos homens devido às tempestades e a doenças no início do Verão. Precisaria de todos para levar os barcos de volta para casa. Seria um feito demasiado arriscado. Resolveriam aquela disputa de um modo diplomático.

– Se vieram em paz, então talvez devamos discuti-lo – o abade inclinou a sua cabeça grisalha. – Mas receio que tenham vindo aqui a mando de um néscio. Neste momento, não sei se guardarmos algum dinheiro de Oeric, o Escocês.

– Esse problema não é meu. O Escocês mostrou-me uma tábua com o vosso selo e disse-me que vocês guardavam o seu dinheiro.

Um monge com a cara marcada pela varíola deu um puxão ao hábito do abade e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Haakon viu como o abade franzia a testa.

– E vocês têm essa tábua? – o abade estendeu a mão e depois deixou-a cair. – Pensava que não. No entanto, investigá-lo-ei. Levar-me-á algum tempo. Você e os seus homens são bem-vindos a servirem-se de água e de comida.

– Tenho o selo de Oeric – Haakon cerrou os dentes e cruzou os braços. – Ele garantiu-me que isso seria o suficiente. Não queremos que nos engane e nos negue o ouro que nos pertence.

– São escória. Escória! O meu tio Oeric nunca enganou ninguém! – gritou o monge com a cara marcada pela varíola. – Não podem manchar este lugar sagrado com as vossas mentiras pagãs venenosas.

– Tem razão, primo! – gritou outro. – Foram eles que atacaram e destruíram a quinta do meu pai no ano passado.

– Nós nunca... – começou a dizer Haakon.

Antes que conseguisse acabar a sua frase, o segundo monge correu com uma adaga e espetou-a no estômago de Erik, antes que este pudesse reagir. Uma mancha vermelha começou a espalhar-se sobre o seu corpete de pele.

– Atacaram-nos! – gritou Haakon.

 

 

Annis espreitava o máximo que conseguia e tentava ouvir a troca de palavras entre o seu tio e o bonito bárbaro.

O seu tio, com a cabeça muito erguida, virou-se e começou a afastar-se. Alguém gritou qualquer coisa numa língua estrangeira. O seu tio parou. Um monge correu e espetou uma adaga no estômago de um dos bárbaros. Como castigaria o seu tio a insubordinação? Os guardas do seu tio correram para protegerem o monge, enquanto os atacantes desembainhavam as suas espadas.

Annis sentiu-se como se estivesse a ver tudo debaixo de água. O tempo parou e cada movimento pareceu durar uma eternidade. Os guardas carregaram contra os bárbaros, que contra-atacaram.

O guerreiro berserker levantou o seu machado, enquanto gritava qualquer coisa numa língua bárbara. O homem de cabelo preto levantou a mão para o parar, mas o outro guerreiro afastou-lhe a mão ao avançar para o seu tio, com o machado a reluzir sob o sol da manhã.

O seu tio não se mexeu. A cara dele demonstrava uma expressão inquisitiva. Levantou as mãos... em jeito de bênção ou de súplica.

O bárbaro ignorou o gesto. Desceu o machado e desferiu um único e desumano golpe.

Annis conteve um grito e desviou o olhar daquele horror, mas na sua mente ficou gravada a imagem do machado a cair e do sangue a jorrar, sujando a areia dourada com o seu vermelho intenso, enquanto a cabeça do seu tio rolava sobre ela. Não se atreveu a voltar a olhar enquanto o som que provinha da praia a rodeava: gritos e súplicas clamando piedade misturavam-se com cânticos bárbaros ferozes.

Os sinos começaram a repicar novamente, com força.

O seu corpo ficou intumescido. A sua mão cobria a boca e sentia um nó no estômago. O seu cérebro continuava a dizer que aquilo não podia ser real. Tinha de ser um pesadelo. Aquelas coisas não aconteciam ali.

Annis queria deixar-se cair de joelhos e chorar, mas, acima de tudo, queria acordar. Mordeu o lábio, saboreou o seu sangue e então soube que tudo era real; uma realidade horrível. Mas os seus pés continuavam paralisados. Annis sabia que, se voltasse a olhar, as areias douradas estariam manchadas de vermelho.

– O que se passa, milady? O que aconteceu? Está muito pálida. Diga-me... O que viu?

– Temos de nos esconder. Depressa! – Annis agarrou-lhe nas mãos. – Aconteceu uma coisa terrível na praia. Não estamos a salvo. Ninguém está a salvo.

Annis esvaziou o conteúdo do seu toucador para um saco, enquanto tentava pensar com clareza. Tinha havido rumores de tais criaturas durante vários anos; dizia-se que atacavam quintas e pediam tributos a populações próximas da costa, mas ela jamais teria imaginado que aconteceria um ataque bárbaro ali. As histórias que o seu tio contava relatavam espoliações, raptos e outras coisas até piores. Ele considerara que se tinham tratado de exageros, mas ela estava a descobrir naquele momento que aquelas histórias eram demasiado suaves para o que ela tinha presenciado. Aquela praga de pagãos era capaz de qualquer coisa. Tinham de fugir. Naquele preciso momento, antes que as descobrissem.

– Escondermo-nos? – gritou Mildreth, com os olhos cada vez mais abertos. – Escondermo-nos onde? Deveríamos ir para a igreja? Saint Cuthbert proteger-nos-á no seu túmulo.

– Não! – a imagem do machado a cair sobre a cabeça do seu tio perseguia Annis. – Não respeitaram os representantes de Deus. Porque iriam respeitar o seu lugar sagrado?

Mildreth benzeu-se e ajoelhou-se.

– Então, estamos condenadas.

– Nunca digas isso – Annis agarrou no braço de Mildreth e tentou levantá-la, mas a empregada não respondia. Continuou no chão e começou a rezar em voz baixa. Annis levou a mão aos olhos. Não tinha a intenção de ficar ali aninhada. Queria viver. Tinha de haver um modo de fugir.

– Temos de tentar chegar à península. Há que avisar as outras pessoas.

Mildreth começou a murmurar com mais rapidez.

Annis arriscou-se a voltar a olhar pela janela. A praia estava repleta de guerreiros, com as suas espadas e machados desembainhados à medida que avançavam. Um som forte encheu o quarto quando os monstros começaram a bater com as suas armas contra os seus escudos.

Produziu-se um grande estrépito quando o portão do pátio foi derrubado. Era só uma questão de tempo.

Annis pressionou as mãos contra as suas têmporas. Não podia deixar Mildreth ali. Tinham de sair dali. Não se atrevia a esperar por nenhum dos seus empregados. Ou teriam fugido ou estariam demasiado ocupados a lutar contra os bárbaros para cuidarem dela.

Não podiam ficar na casa de hóspedes. Os bárbaros irromperiam ali, em busca de ouro e prata. Não hesitariam em levar prisioneiros. Annis sentiu um aperto no estômago ao recordar as histórias que o seu tio tinha contado durante o jantar, duas noites antes. Então, ela tinha pensado que não passavam de histórias para assustar as crianças. Mas agora estava a dar-se conta de que nem sequer se aproximavam daquele terror.

Mildreth acabou de rezar e olhou para a frente, com o rosto pálido e o olhar desfocado. Annis ajoelhou-se e pegou nas mãos geladas da empregada.

– Iremos para a pocilga. Lá, não haverá nada para os bárbaros. Ninguém procurará lá. Quererão tesouros. Quando se forem embora, sairemos de lá, sãs e salvas. Ilesas. Compreendeste-me?

A empregada assentiu, embora o gesto tivesse sido quase imperceptível. Annis pegou num pano e meteu nele alguns objectos. O espelho tinha pertencido à sua avó e o alfinete, à sua tia. O crucifixo de prata era dela. Tentou manter a calma e pensar com clareza nos passos que iam dar. Desceriam pelas escadas e sairiam pela porta das traseiras, para as cozinhas, e dali para a pocilga.

Havia uma boa vista da ponte; quando a maré o permitisse, atravessá-la-iam.

– Vamos embora. Agora!

Mildreth levantou-se, deu um passo trémulo e caiu. Annis apertou as mãos, num gesto de frustração.

– Deixe-me, milady – as lágrimas caíam pelo rosto de Mildreth.

– Nunca. Sairemos desta. Tu e eu.

– Que Deus, a Virgem Maria e todos os Santos a abençoem! – a mão de Mildreth apertou com força a de Annis.

Um estrondo ecoou no andar superior. Um machado batia à porta. A seguir, ouviu-se o som de gritos e de gente a correr, enquanto alguém tentava evitar que entrassem. Mildreth começou a chorar. Annis lançou instintivamente a mão à pequena adaga que utilizava nas refeições e que usava no seu cinto. Uma pequena protecção perante as espadas, mas era tudo o que tinha para se defender.

Annis sussurrou uma prece a Deus.

Gotas de suor começaram a cair pela sua cara e pelo seu pescoço.

– É preciso bloquear a porta! – Annis empurrou a cama, enquanto Mildreth continuava de joelhos, imóvel. – Ajuda-me, Mildreth, se dás valor à tua vida!

Algures no edifício, umas escadas rangeram.

 

 

Ele tinha planeado aquele dia de um modo diferente. Tinham chegado ali em paz, em busca de um acordo, não de uma guerra.

Haakon analisou a batalha, ou melhor, a derrota de Lindisfarne, que estava a desencadear-se à sua volta. Já havia chamas a devorar muitas das construções. Sabia que Lindisfarne tinha reputação de ser o centro do saber, mas aquilo não podia evitar-se. O abade deveria ter tido mais controlo sobre os seus monges. Tinha perdido um bom guerreiro e um bom amigo sem nenhuma razão quando o monge tinha começado o ataque. Teria esperado o abade que ele não reagisse perante tal agressão sem justificação?

– Bjorn tinha razão, Haakon! – gritou Thrand, de uma porta. Apareceu despenteado, mas ileso, e puxava uma arca transbordante de cálices de ouro e crucifixos com pedras preciosas. – A igreja carrega com o peso do ouro e das jóias. Nunca vi nada igual. Foste muito sábio ao dizeres que viéssemos aqui recuperar o dinheiro que o Escocês nos devia.

– Queimem as casas. Este é como qualquer outro assalto, Thrand – respondeu Haakon. – Levem tudo o que puderem, festejá-lo-emos quando estivermos de volta às nossas terras.

Recusava-se a sentir alguma coisa por aqueles homens. Não haveria lugar no Valhalla para eles ou para onde quer que fosse que Deus enviava os seus guerreiros. Aqueles não eram guerreiros. Os meninos sabiam muito melhor como manejar uma espada. Aquele priorado estava desamparado.

– Estejam atentos!

Vários guardas do priorado avançaram para ele, mas Thrand alcançou-os primeiro e começaram a lutar com as suas espadas. Haakon feriu um deles e Thrand despachou os outros.

– Quase poderias assemelhar-te a um guerreiro berserker.

O jovem levantou a sua espada.

– Matar não me produz nenhum prazer, Haakon. Sabe-lo. Nesse aspecto, difiro de Bjorn.

– Viste Bjorn?

– Não desde que começou a luta. Foi uma estupidez da parte destes homens atacarem-nos com uma adaga insignificante sem esperarem que defendêssemos a nossa honra.

– Preferia que Bjorn tivesse esperado pelas minhas ordens.

– Foste tu quem decidiu que fosse ao teu lado – disse Thrand, encolhendo os ombros. – Bjorn é um homem perigoso... Tanto para o amigo como para o inimigo, quando entra naquele transe e se deixa levar pela sua sede de sangue.

– Ele nunca atacaria um membro do felag. Fez um juramento de sangue.

– Se tu o dizes... Há dois Verões, havia o rumor de que Bjorn tinha quebrado o seu juramento, mas nunca acreditei – Thrand continuou a puxar a arca. – Tu estás no comando desta expedição e não tenho nenhum desejo de te enfrentar pela liderança. Bjorn é responsabilidade tua.

Haakon esfregou a nuca, reconhecendo em silêncio a verdade das palavras de Thrand. Bjorn era um perigo para toda a gente e para ele mesmo. O que tinha de fazer era encontrar Bjorn e tirá-lo daquela loucura que o tinha devorado. Tinham jurado lealdade uns aos outros, mas ele sabia o que Bjorn podia chegar a fazer quando se deixava arrastar pela sua loucura.

– Bjorn! – gritou. – Bjorn, já ganhámos o dia! Está na hora de dividirmos o saque!

 

 

Annis agachou-se atrás da pilha improvisada, composta por uma cama, um colchão, arcas e a mesa. As suas tranças tinham-se soltado enquanto trabalhava freneticamente e o cabelo caía-lhe livremente pelas costas.

Esperava, implorava. Mal se atrevia a respirar.

Até àquele momento, não se tinha ouvido nenhum outro som à excepção do rangido das escadas. Um falso alarme ou alguma coisa mais sinistra?

O atacante teria saído da casa?

O fumo formava redemoinhos no ar, dificultando a respiração e irritando os olhos de Annis. Os seus músculos queixavam-se depois de ter posto o mobiliário diante da porta. Mildreth não a tinha ajudado, tinha ficado sentada, balançando-se, enquanto cuidava das escassas posses de Annis.

Annis voltou a implorar a Deus, mas receava que Ele não estivesse a ouvi-la. Deus tinha-lhes virado as costas e tinha-os abandonado à sua sorte, como advertência a outros. Era o que o seu tio teria dito se tivesse sobrevivido.

Como podia a morte do seu tio e dos outros irmãos agradar a Deus? O seu tio fora venerado por todos. A sua piedade era sobejamente conhecida e a sua sabedoria, respeitada. Mas agora estava morto e o seu sangue deslizava sobre a areia dourada.

Ela olhou para a adaga que tinha nas suas mãos.

– Eu protejo-te – sussurrou a Mildreth, que não deu sinal de a ter ouvido. – Prometo.

A porta do quarto sacudiu-se violentamente.

Ela ficou paralisada. Tinha um nó na garganta. Partiria o agressor em busca de uma vítima mais fácil?

Então, a porta abriu-se com um golpe arrepiante, como se a cama e o resto das coisas não passassem de simples ramos secos.

Apareceu um homem. Do seu machado pingava sangue. A sua pele estava salpicada de manchas escuras. O sangue de Annis gelou. Era o assassino do seu tio.

Por trás do capacete, os seus olhos reflectiam reflexos dourados. Tinha os dentes cerrados.

«Socorro!» Annis recuou para se esconder entre as sombras.

O homem observou o quarto. A janela abria-se e fechava-se. Ele semicerrou os olhos e a janela chamou a sua atenção.

«Por favor, que pense que fugimos!»

O guerreiro berserker soltou um gemido e virou-se, disposto a sair do quarto. O coração de Annis disparou. Contra todos os prognósticos, salvar-se-iam.

«Vai-te embora! Sai daqui!»

Uma choraminguice escapou dos lábios de Mildreth. O homem começou a respirar com fúria e virou-se. Daquela vez, não lhe passou ao lado o lugar onde Mildreth estava ajoelhada.

Um sorriso maligno atravessou o seu rosto e acariciou o seu machado com carinho.

– Estás aqui, Bjorn. Encontrei-te – Haakon subia as escadas que levavam ao andar superior. – Não há nada aqui. Quem quer que estivesse aqui partiu... há muito tempo.

Ficou petrificado. O guerreiro enlouquecido começou a avançar lentamente para uma mulher encolhida de medo. No outro canto, outra mulher de olhos luminosos estava agachada entre as sombras, suplicando-lhe com o olhar. O queixo de Haakon ficou tenso. Não havia honra em matar uma mulher indefesa.

– Já temos o que viemos buscar e mais ainda. Está na hora de partirmos, Bjorn. Antes que a maré mude – Haakon manteve o seu tom de voz firme. Tinha de tirar Bjorn do seu estado de loucura.

Mas não houve reacção da parte de Bjorn. Só um lento avançar. Haakon esperava que a mulher conseguisse mexer-se e salvar-se enquanto ele distraía Bjorn. Mas ela continuava encolhida no chão.

– O ouro já está assegurado, Bjorn Bjornson. Está na hora de partirmos.

Bjorn virou a sua cabeça enorme para o lado e olhou para Haakon como se nunca o tivesse visto. O seu olhar pareceu cravar-se na espada de Haakon. Uma luz sobrenatural apareceu nos olhos de Bjorn.

Sangue e saliva rodeavam a boca do berserker enquanto avançava para Haakon, rodando o seu machado.

Haakon permaneceu quieto. Bjorn tinha de o reconhecer. Tinham partilhado muitas aventuras juntos. Ele nunca tinha ido tão longe.

– Bjorn, é Haakon, o teu Jaarl. Não faltes ao teu juramento. Volta!

Alguma coisa apareceu nos olhos de Bjorn. Observou o movimento do seu machado. Haakon fez-lhe um gesto animador com a cabeça, indicando-lhe que se aproximasse. Tinha conseguido.

Os olhos de Bjorn pousaram na espada de Haakon, que resplandecia com uma luz impura. A loucura voltou a apoderar-se dele enquanto humedecia os lábios.

Bjorn levantou o seu machado. Haakon esquivou-se para a direita, enquanto levantava o seu escudo, que bateu no machado. Sentiu a vibração do golpe a percorrer-lhe o braço. Bjorn inclinou-se para trás e tentou novamente.

– Sou o teu companheiro, Bjorn – Haakon estendeu as mãos e falou com voz suave, como uma mulher canta ao seu bebé. – Fizemos um juramento por Thor e Odin. Os nossos sangues misturaram-se. Tu és membro do felag.

Mas o homem não respondeu. O cheiro do sangue tinha-o enlouquecido.

Haakon levantou novamente o seu escudo e ouviu-o a ranger quando Bjorn lhe bateu com o seu machado.

Annis observou o guerreiro bárbaro a enfrentar o outro. A sua espada chocou várias vezes com o machado. Não tinha nenhum sentido que estivessem a lutar entre os dois, mas servia para distrair aquela besta.

– Corre, Mildreth, corre agora! Para a pocilga! Encontramo-nos lá!

A empregada não demorou a agir. Saiu a correr por trás do guerreiro. O seu pé prendeu-se no dele e fê-lo cambalear ligeiramente. O escudo caiu-lhe no chão e a espada escapou-lhe das mãos. Ficou deitado, indefeso.

Annis sabia que ela também devia correr, mas as suas pernas recusavam-se a mexer-se. Tinha de se ir embora. Era a sua melhor oportunidade para fugir. Devia ir-se embora naquele preciso instante, mas o guerreiro bárbaro continuava ali deitado.

Aquele guerreiro tinha salvado a vida de Mildreth e provavelmente também a dela. Agora, estava em perigo de morte e, se morresse, o outro homem iria atrás dela.

Aquela besta avançou para onde o guerreiro estava no chão. Parou e observou o homem. Um sorriso foi-se abrindo lentamente no seu rosto.

Annis parou de respirar.

A besta levantou o seu machado para desferir um último golpe.