hc2501.jpg

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Só uma carícia

Título original: Just One Touch

© 2017, Maya Banks

© 2018, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Tradutora: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Imagem da capa: Shutterstock

 

ISBN: 978-84-9139-256-9

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30

Capítulo 31

Capítulo 32

Epílogo

Se gostou deste livro…

Capítulo 1

 

Corria pelo bosque emaranhado e, dos seus lábios, escapava a respiração entrecortada devido ao medo enquanto lutava para levar o oxigénio prezado até aos seus pulmões. Um ramo atingiu-lhe dolorosamente o rosto e levantou a mão com um gesto instintivo de proteção. Afastou-a depois para se proteger de outros obstáculos que esperavam na noite escura. O céu coberto escondia a lua e deixava-a às cegas enquanto continuava a tentar abrir caminho entre as árvores.

Era apenas uma questão de tempo até detetarem a sua ausência. Não esperariam até ao amanhecer. Em menos de uma hora, soltariam aos cães para a localizarem. Contavam com aquela vantagem. Ela não tinha nenhuma.

Tropeçou nas raízes de uma árvore e caiu de frente para o chão, batendo com o rosto. Todo o ar abandonou os seus pulmões. Permaneceu deitada, com a respiração ofegante e com as lágrimas a arder nos olhos. Cerrando os dentes, com um ar de determinação, obrigou-se a endireitar-se para continuar a fugir, ignorando a dor insuportável que rasgava o seu corpo.

Encontrá-la-iam. Não descansariam até a obrigar a voltar. Não podia parar. Não podia desistir. Morreria antes de voltar.

Um calafrio percorreu-lhe as costas ao ouvir o uivo distante de um coiote. Parou ao ouvir um segundo coiote e, depois, um terceiro, muito mais perto do que o primeiro. Os barulhos de uma alcateia a gemer, a ladrar e a uivar deixaram-na com pele de galinha e ainda com mais frio.

Estavam à frente dela. Eram o único obstáculo que se interpunha entre Jenna e o campo aberto que representava a sua liberdade. A sua possível liberdade. Contudo, então, apercebeu-se de que, se se aproximasse dos coiotes, talvez os cães que a seguiam se mostrassem renitentes a segui-la para não se aproximarem deles.

As suas oportunidades com os coiotes selvagens eram imensamente melhores e preferíveis às que o futuro lhe proporcionava se conseguissem arrastá-la novamente para o complexo. O céu estava a começar a clarear para o este, mas não o suficiente para distinguir o caminho. Consciente de que tinha de continuar a avançar, custasse o que custasse, lançou-se para a frente, afastando a ramagem densa enquanto tentava abrir caminho através da vegetação espessa.

Já não sentia os pés descalços. O frio e os numerosos cortes e golpes tinham-nos deixado intumescidos. E agradecia. Sabia que, quando recuperasse a sensibilidade, ficaria indefesa.

Teria de continuar a andar durante muito mais tempo? Estudara os planos em minutos roubados e correndo um risco enorme ao entrar em zonas proibidas do complexo. Sabia que o caminho que escolhera, que se dirigia para o norte, era o mais curto para atravessar o bosque impenetrável que rodeava o complexo. Memorizara todos os indicadores e encaminhara-se para o norte do extremo setentrional do muro.

Mas e se não seguira uma linha reta? E se estivera a correr em círculos? Quis deixar escapar um soluço da boca ensanguentada, mas reprimiu-o, mordendo o lábio inferior e infligindo dor de forma intencionada.

Então, ouviu algo que a fez esquecer o frio. O pânico deslizou pelas suas costas e ela ficou paralisada pelo terror. Os cães. Ainda estavam longe, mas era um som inconfundível com que estava intimamente familiarizada. Sabujos: Rastreadores de sangue. E ela sangrara por todo o bosque, deixando um rasto que transformaria a sua busca num jogo de crianças para os cães.

Com um soluço, obrigou-se a continuar a avançar. A sua fuga era cada vez mais desesperada. Saltava troncos e ramos caídos e caiu meia dúzia de vezes naquela fuga frenética, impulsionada pela angústia e por uma vida de desespero.

Uma cãibra endureceu-lhe a coxa e gemeu, mas ignorou aquela dor paralisante. Sentiu outra nas costas. Oh, meu Deus! Bateu nas costas, pressionou e massajou o músculo e levantou o rosto devastado pelas lágrimas para o céu.

«Meu Deus, por favor, ajuda-me. Recuso-me a acreditar que sou a abominação que dizem que sou. Que serei castigada por algo que não escolhi. Não estão a cumprir com a tua vontade. Não posso, não quero acreditar. Por favor, tem piedade de mim.»

Os cães pareciam estar mais perto e parara de ouvir os coiotes. Talvez tivessem fugido, assustados, com os uivos altos da matilha nutrida que a procurava. Outra cãibra quase a fez cair e compreendeu que, em breve não seria capaz de continuar a correr.

— Porquê, meu Deus? — sussurrou. — Qual é o meu pecado?

E, de repente, saiu de entre os ramos e arbustos e foi tal o impacto de não encontrar nenhum obstáculo que tropeçou e caiu para a frente, aterrando de cara… num caminho de cascalho?

Estendeu as mãos no chão e curvou os dedos na terra e no cascalho. As gotas de sangue ensoparam a terra e limpou apressadamente a boca e o nariz com a manga da camisola esfarrapada.

A euforia cresceu. Conseguira!

Levantou-se a toda a velocidade, repreendendo-se. Ainda não conseguira nada. Apenas abandonara o bosque e, naquele momento, era um alvo mais fácil. Contudo, pelo menos, conseguiria saber para onde ir.

Ou, pelo menos, era o que esperava.

Começou a correr pela estrada, mas desviou-se para a berma assim que as pedras começaram a cravar-se nos seus pés. A erva não era muito melhor, mas, pelo menos, o rasto de sangue não seria tão evidente.

Para seu espanto, a apenas uma centena de metros, pareceu-lhe reconhecer uma pequena bomba de gasolina e uma banca de frutas. Aumentou a velocidade dos seus passos, olhando em todas as direções enquanto avançava. Até olhava por cima do ombro, receando ver os cães atrás dela. Ou, pior ainda, os anciãos.

Ao não ver nada, nem ninguém, continuou até à estação de serviço sem ter a menor ideia do que a esperava lá. Sabia muito pouco sobre o mundo moderno, para além do que aprendera nos livros, nas revistas e nos jornais que lera às escondidas. Parecia-lhe um mundo estranho, aterrador e maior do que era capaz de imaginar. Mas tentara acumular todo o conhecimento possível, preparando-se para aquele dia.

Para a liberdade.

Ao chegar à bomba de gasolina, reparou numa carrinha velha. Estava estacionada à frente da bomba de gasolina e uma lona cobria o reboque por completo. Olhou para a direita e para a esquerda e, depois, para a bomba de gasolina, ponderando rapidamente as suas opções. Ouviu vozes.

Baixou-se atrás da carrinha a toda a velocidade. O coração acelerava com força no seu peito e respirava com gemidos dolorosos.

— Temos de levar a carga para Houston. Espero estar de volta às duas da tarde. Precisas de alguma coisa da cidade, Roy?

— Não, hoje não. Mas tem cuidado. Ouvi dizer que, esta manhã, o trânsito está mau. Houve um acidente em cadeia na 610.

— Claro. E tu tem também cuidado.

Sem pensar duas vezes, Jenna levantou a lona da carrinha e, para seu deleite, viu que havia espaço suficiente para se aninhar entre as caixas de frutas e legumes. Com a maior rapidez e o maior silêncio que pôde, deslizou na carroçaria da carrinha, com o seu corpo a protestar de dor. Voltou a endireitar a lona, esperando tê-la deixado tal como a encontrara, e inclinou-se para a frente tanto quanto foi possível para evitar cair.

Aquele homem dirigia-se para a cidade. Pensar nisso, aterrorizava-a. A simples ideia de se ver engolida por uma cidade tão grande como Houston era paralisante. Mas também jogaria a seu favor. De certeza que os anciãos teriam mais problemas para a encontrar numa cidade repleta de atividade. Já para não mencionar que não poderiam raptá-la em plena luz do dia. E poderiam fazer as duas coisas se permanecesse ali, naquela zona rural e isolada do norte de Houston.

Susteve a respiração quando a carrinha tremeu com a chegada do condutor. Depois, pôs o veículo a trabalhar e começou a deslocar-se para trás. Jenna levou o punho à boca inchada e mordeu os nós dos dedos quando a carrinha parou, mas, um segundo depois, o veículo começou novamente a deslocar-se e ela compreendeu que tinham saído para a estrada de cascalho.

«Obrigada, meu Deus. Obrigada por não Te esqueceres de mim. Por me fazeres saber que não sou o que eles diziam e que não és o Deus vingativo de que falavam.»

Capítulo 2

 

Isaac Washington agarrou no copo de café e em dois bagels e saiu de um pequeno centro comercial situado a alguns quarteirões dos escritórios da DSS. Devido à popularidade do café e ao facto de aquela ser a hora de ponta da manhã em Houston, tivera de deixar o carro do outro lado da estrada, no estacionamento do centro comercial.

Era uma sorte que fosse inverno ou que o tempo fosse o mais invernal que poderia ser em Houston, pois, assim não acabaria encharcado em suor depois daquela caminhada. Sentia-se um ligeiro frio no ar, uma cortesia da última frente fria da noite, o que era uma mudança agradável depois do calor cansativo do verão e do outono.

Estava prestes a chegar ao seu todo-o-terreno quando se apercebeu de que a porta do condutor estava aberta. Filho da…! Esquecia-se sempre de fechar a maldita porta e, bom, eram muitas as vezes em que deixava as chaves na ignição quando tinha de fazer um recado rápido.

Pousou o café e os bagels, pegou na pistola e pôs-se entre dois carros, antes de começar a avançar a passo lento para o todo-o-terreno, tentando passar despercebido enquanto cortava a distância entre o seu veículo e ele.

Continuou a andar entre os carros estacionados até estar a um só carro de distância. Com muito silêncio, dirigiu-se para a parte de trás. Queria aparecer por trás de quem quer que estivesse a tentar fugir com o seu todo-o-terreno e deixá-lo preso entre a porta aberta e a pistola carregada.

Levantou-se a pouco e pouco, o suficiente para conseguir ver bem o ladrão, e franziu o sobrolho ao ver uma silhueta magra com uma camisola com capuz cheia de buracos. As calças de ganga não estavam em muito melhor estado. O capuz cobria-lhe a cabeça. A julgar pelo seu tamanho, tinha de se tratar de um adolescente com vontade de dar uma volta num carro roubado.

Quem quer que fosse, era um péssimo ladrão de carros. Nem sequer estava a vigiar as costas para ver se o dono do todo-o-terreno, ou qualquer outra pessoa, aparecia atrás dele. Quando viu que começava a deslizar para trás do volante, soube que tinha de agir e esperar que o tipo não estivesse armado.

— Não te mexas — avisou Isaac, aparecendo de repente e apoiando a pistola nas costas do rapaz.

O adolescente ficou muito rígido e virou a cabeça. E, quando Isaac viu o suposto adolescente que estava a tentar roubar-lhe o todo-o-terreno, todo o ar abandonou os seus pulmões num suspiro enérgico.

Uma jovem ficou a olhar para ele com uns olhos enormes e assustados. O seu rosto era de uma palidez fora do comum, o que fazia com que o sangue e o inchaço do seu nariz e da sua boca fossem mais evidentes. Apesar da sua indumentária e do estado em que se encontrava, a primeira coisa em que Isaac pensou foi que estava a observar o rosto de um anjo.

Algumas madeixas de cabelo loiro sobressaíam do capuz da camisola, emoldurando uma pele que, apesar das feridas, parecia de porcelana. O sangue e as feridas não condiziam com a imagem que aquela jovem projetava. Isaac baixou o olhar para o seu traje mísero e percebeu que nem sequer tinha uns malditos sapatos. Não podia dizer-se que estava muito frio, é claro, mas estava demasiado para andar pela rua com aquela indumentária e os pés descalços.

— Por favor, não me magoe… — sussurrou a jovem, com lábios trémulos.

O seu corpo inteiro tremia enquanto levantava as mãos com um gesto de rendição. O aborrecimento de Isaac ao ver que estavam a roubar-lhe o todo-o-terreno desapareceu para ser substituído por um sentimento protetor forte e pela raiva de saber que alguém queria magoar aquela mulher minúscula e de aspeto inocente.

— Como te chamas? — perguntou, com delicadeza, antes de baixar a pistola e guardá-la.

O terror apareceu naqueles olhos azuis e claros como o cristal. Isaac nunca vira uns olhos com uma cor tão especial. Aqueles olhos, juntamente com o loiro sedoso do cabelo, o aspeto delicado e a pele clara, conjuraram a imagem de um anjo na sua mente.

— Não… não… posso dizer.

Isaac suavizou a sua expressão.

— Tens algum problema? Porque posso ajudar-te. O meu trabalho consiste em ajudar pessoas que têm problemas.

Ela abanou a cabeça com ênfase.

— Por favor, deixe-me ir. Lamento muito ter… — interrompeu-se e apontou para o veículo, mexendo fracamente a mão. — Não sabia o que fazer.

— Querida, acho que não viste o teu estado — declarou ele, com delicadeza. — Estás ferida e cheia de nódoas negras, tens um aspeto horrível e não estás vestida para este tempo. Nem sequer tens sapatos.

— Tenho de ir — sussurrou ela. — Tenho de ir.

Isaac deu um passo em frente ao perceber a sua urgência e a sua fuga iminente. Não sabia porque era tão importante impedir que se fosse embora, mas, raios, como podia deixar que aquela mulher misteriosa se fosse embora depois de ter visto em que condições estava?

Ela encolheu-se, dobrando-se sobre si própria com um gesto de proteção instintivo e consciente. Isaac sentiu a sua própria expressão a toldar-se ao pensar nos motivos que aquela jovem podia ter para presumir que devia ter tanto medo de um desconhecido. Mas compreendia a sua reação. Não podia dizer-se que se tinham conhecido nas melhores circunstâncias. Sobretudo, tendo em conta que ele aparecera com uma pistola.

— Deixa-me comprar-te alguma coisa para comer. Acabei de sair do café do centro comercial, mas, quando vi a porta do todo-o-terreno aberta, deixei cair o café e os bagels. Acho que também precisas de alguma coisa quente.

Reconheceu o desejo nos seus olhos com a menção da comida e do café e desviou automaticamente o olhar para a sua silhueta, apercebendo-se da sua magreza. Tinha umas olheiras profundas por baixo dos olhos que sugeriam falta de sono, para além de falta de comida.

Bolas! Tinha todos os sinais de uma vítima de maus-tratos. Teria sido o marido? O namorado? Até poderia ter sido o pai. Parecia suficientemente jovem para ser uma adolescente. Os seus olhos eram a única coisa que a fazia parecer adulta. Uns olhos que tinham visto demasiado. Uns olhos mais velhos do que ela, educados com dureza na universidade de uma vida miserável.

— Juro-te que não vou magoar-te — tranquilizou-a, no mesmo tom pacificador que teria usado com um animal selvagem. — Não tenciono chamar a polícia nem te denunciar pela tentativa de roubo.

A jovem empalideceu ainda mais com a menção da polícia e Isaac amaldiçoou-se pelas palavras imprudentes.

Ela estava a abrir a boca para protestar quando Isaac distinguiu o assobio familiar de uma bala. O carro que estava ao seu lado sacudiu-se de forma violenta no momento em que o pneu recebeu o impacto. O eco do tiro reverberou com força ao longe.

— Baixa-te! — gritou Isaac, precipitando-se para a mulher.

Rodeou-lhe a cintura com os braços e virou-se para a atirar ao chão e protegê-la com o seu corpo. Estava a procurar a sua própria pistola quando novos tiros acertaram no todo-o-terreno e no carro que estava ao lado. E, depois, a dor explodiu no seu peito.

Abriu a boca, surpreendido e, por um instante, foi incapaz de se mexer. A força abandonou as suas pernas, inclinou-se como um balão sem ar e caiu com um golpe seco ao lado da mulher, que continuava deitada no chão a menos de um metro de distância.

— Não, não! — gritou Jenna. — Não!

Isaac viu o seu rosto. A angústia e a preocupação tornavam as suas feições mais marcadas. A perplexidade e a sensação de fracasso assaltaram-no enquanto sentia como o seu corpo se desligava. Depois de tudo o que suportara e contra o qual lutara durante o ano anterior, era assim que ia morrer?

— Ouve-me. — E ofegou. Ele próprio ficou assustado ao ouvir a sua voz transformada num mero sussurro. — Entra no meu todo-o-terreno. As chaves estão na ignição. Sai daqui a toda a velocidade e põe-te a salvo. Não tens forma de me ajudar. Estou a morrer.

— Não! — opôs-se ela. — Não tenciono deixar-te!

Gatinhou para se aproximar de Isaac e, de repente, o seu rosto abateu-se sobre ele. Os seus olhos azuis cintilaram até adquirir um tom prateado enquanto o capuz da camisola caía, soltando uma cascata de caracóis loiros tão descontrolada por cima dos seus ombros como as mãos que se mexiam no seu peito ensanguentado.

— Vai-te embora! — gritou Isaac.

Tossiu e engasgou-se ao sentir o gosto metálico do sangue na língua.

Ela fechou os olhos e franziu a testa, angustiada, e Isaac gemeu quando sentiu as mãos dela a pressionar-lhe o peito com força.

Foi como se lhe tivesse caído um raio em cima. Uma descarga elétrica. O coração acelerou com força, depois, parou e a visão desfocou-se. As feições delicadas daquela jovem tornaram-se cada vez mais imprecisas.

Parou de lutar contra o inevitável: A morte. Relaxou, esperando a chegada do fim, enquanto o frio alcançava o mais profundo do seu coração. Até a mais espantosa das sensações o devolver à consciência. Carinho. O carinho mais delicioso que alguma vez sentira espalhou-se a pouco e pouco pelas suas veias, trazendo com ele o sussurro da esperança, a declaração de um novo renascer.

Tentou falar, protestar, perguntar se aquilo era a morte, mas só foi capaz de bloquear no momento em que a visão se esclareceu e conseguiu observar a tensão insuportável gravada em cada uma das linhas do rosto daquela jovem.

Nunca experimentara algo tão maravilhoso como aquele calor que emanava do interior do seu corpo. O seu coração cansado e os seus pulmões pareceram relaxar e, além disso, já não havia dor… Só restava a sensação de estar a renascer. Era como se um cirurgião tivesse posto as mãos no seu peito e tivesse reparado meticulosamente o dano feito pela bala.

Levantou a mão, espantado ao perceber que tinha forças para o fazer. Respirou, ansioso, o oxigénio doce que dava vida e maravilhou-se ao descobrir que não só a dor desaparecera, como sentia algo indescritível. Não havia drogas, nem narcóticos, nem analgésicos capazes de causar uma sensação tão maravilhosa.

Estendeu a mão para o pulso da jovem e rodeou-o com os dedos. Não sabia o que aquela mulher estava a fazer, mas sabia que tinha de parar. Estava em perigo. Os francoatiradores continuavam presentes. Podiam ir atrás dela a qualquer momento.

Ela abriu os olhos no instante em que lhe tocou e os próprios olhos de Isaac esbugalharam-se ao descobrir o redemoinho turbulento de cores resplandecentes que tornavam a outrora íris azulada indetetável.

— Não — respondeu ela, entredentes. — Ainda não acabei. Tens de me deixar acabar. Não vou deixar que morras.

Isaac afastou a mão, atordoado com o que estava a ver ou, melhor dizendo, a sentir. Àquela altura da vida, pensava que já nada podia surpreendê-lo ou apanhá-lo desprevenido. Achava que, no mundo em que vivia e trabalhava, já nada voltaria a parecer-lhe incrível. Contudo, nunca tinha imaginado tal poder, tal habilidade. Deus não era o único que tinha poder sobre a vida e a morte?

Não, isso não era verdade. Homens e mulheres matavam-se diariamente. Os humanos tinham mais poder de decisão sobre a morte do que sobre a vida. E, no entanto, aquela mulher…

Todo o seu corpo tremeu e o seu tronco ergueu-se como se acabassem de usar um desfibrilador. Sentiu o frio do cimento através do casaco encharcado em sangue e apercebeu-se de que estava quente. Vivo. Inteiro. E a respirar.

Começou a olhar para ela, maravilhado, e descobriu o desespero daqueles olhos tão profundos. Ela afastou as mãos, encolheu os joelhos contra o peito, rodeou-os com os braços e começou a mexer-se para a frente e para trás enquanto as lágrimas caíam pelo seu rosto.

Isaac compreendeu imediatamente o que se passava. Ao salvá-lo, ao curá-lo, renunciara à oportunidade de fugir. A resignação que o seu rosto refletia partiu-lhe o coração quando ainda estava estupefacto com a surpresa de estar vivo. Apalpou o peito com cuidado, afastou a mão e viu-a encharcada de sangue. Mas o sangue procedia da roupa. Não era ele que sangrava. Já não havia nenhuma ferida no seu peito. Sentia uma fraqueza residual, mas talvez fosse só por causa do impacto do que acontecera. Não estava em condições de se levantar, de a puxar a ela, de a pôr no todo-o-terreno e fugir. A única coisa que conseguiria fazer seria matar os dois, ou melhor dizendo, deixar que voltassem a matá-lo. Ela só teria a oportunidade de fugir se o abandonasse ali.

Estendeu a mão e agarrou-a pelo tornozelo, sacudindo-a com delicadeza para chamar a sua atenção. Ela levantou o olhar para ele com uma expressão apagada e Isaac apontou para o todo-o-terreno.

— Vai-te embora, depressa, antes que te vejam! As chaves estão na ignição.

Ela abanou a cabeça enquanto uma nova onda de lágrimas ensopava o seu rosto.

— Bolas, sai daqui! Eu posso conseguir ajuda e ainda tenho a pistola. Pelo amor de Deus, mexe-te!

Pela primeira vez, a esperança apareceu no rosto da jovem, apesar de os seus olhos continuarem a mostrar surpresa. Isaac estava a começar a levantar-se quando deu por si novamente esmagado contra o chão pelo corpo dela, enquanto uma dúzia de balas furavam o todo-o-terreno.

Ela esbugalhou os olhos, mostrando dor, tristeza e um terror inefável. Isaac sentiu a intensidade do seu olhar até aos ossos e o seu peso a arrastá-lo para as profundidades mais turbulentas. Não havia uma só parte do seu corpo que não estivesse a suplicar e, quando falou, Isaac encolheu-se com a angústia que cada palavra transluzia.

— Tens de te esconder. Não podem saber o que fiz. Ninguém pode falar. Não fales de mim com ninguém — suplicou.

Envolveu as mãos de Isaac nas suas mãos minúsculas, levantou-as e levou-as ao peito. Isaac sentiu os batimentos erráticos do seu coração contra os nós dos dedos e percebeu que estava a tremer violentamente.

Não se atreveu a chamar a atenção sobre o facto de o charco de sangue sobre o qual ainda estava deitado a denunciar, pois sabia que perderia as forças, era como se se segurasse por um fio muito fino. Soltar-lhe as mãos, perder o seu contacto, fê-lo sentir-se repentinamente vazio, como se parte dele tivesse morrido. Mas, mesmo assim, empurrou-a para o seu veículo e adotou um tom duro e autoritário enquanto lhe lançava o mais enérgico e imperativo dos olhares.

— Vai-te embora enquanto ainda estás a tempo, bolas! Já te disse que depressa virá alguém ajudar-me. Não permitas que esses animais te ponham as mãos em cima.

Meu Deus, esperava não estar a mentir ao dizer que o ajudariam em breve. Conseguira ativar o botão de «oh, merda!», como Eliza, a sua colega de equipa, chamava ao transmissor que todos tinham com eles. Não estava longe dos escritórios centrais. Bolas, teria de aparecer alguém por ali.

— Pelo amor de Deus, ouve-me! — bramou. — Não sei quem és nem o que raios fizeste, mas não vou deixar que assassinem alguém que acabou de me salvar a vida.

Ela levantou-se com dificuldade, mantendo a cabeça encurvada, e deslizou para trás da porta do todo-o-terreno. Virou-se para olhar para Isaac pela última vez e ele teria jurado que estava a pedir-lhe perdão com o olhar. A porta fechou-se atrás dela e o motor ganhou vida. Isaac fez uma careta ao ver que o todo-o-terreno avançava bruscamente para a frente, parava e começava a avançar novamente com os travões a chiar a modo de protesto.

Merda! Talvez não tivesse sido uma boa ideia mandá-la ir. Nem sequer parecia saber conduzir. Merda, talvez nem sequer tivesse idade para o fazer. Cerrou os dentes com um ar de frustração devido à incapacidade de lhe oferecer a proteção de que tão desesperadamente precisava e rezou para ter tomado a decisão correta.

Verificando as respostas do seu corpo, virou-se até ficar deitado sobre o estômago e arrastou-se à volta da parte dianteira do carro que ficara à frente dele, com os nós dos dedos brancos devido à força com que agarrava a pistola. Apoiou-se contra a grelha do carro e esperou, ainda a esfregar o peito sem conseguir acreditar no que acontecera.

— Isaac — ouviu uma voz baixa ao longe. — Informa-me da situação.

Isaac suspirou, aliviado, ao ouvir Zeke, uma das novas aquisições da DSS, a anunciar a sua chegada.

— Tens reforços? — perguntou Isaac, levantando o tom de voz o suficiente para se fazer ouvir.

— O Dex veio comigo. O que se passa?

— Há francoatiradores. Não sei onde estão, mas não estavam longe quando dispararam pela primeira vez. Não sei se ainda estão em cena ou se já se foram embora. Tenham cuidado e espero que venham bem providos.

Ouviu que Dex respondia com um som brincalhão que ele interpretou como uma afirmação.

— Acertaram-te? — quis saber Zeke.

Isaac abriu a boca, mas fechou-a imediatamente. Como raios podia responder àquela pergunta? Sim, tinham-lhe acertado. Devia estar a caminho da morgue para lhe porem uma etiqueta no dedo grande do pé, mas sentia-se como se nunca o tivessem ferido. Como se o seu coração e os seus pulmões não tivessem recebido um golpe mortal. Como podia explicar uma coisa dessas aos seus colegas?

— Este não é momento para perguntas. Depois, explico tudo. Mas que uma coisa fique clara: Não deixem que vos deem um tiro.

— Não é algo que tenhamos previsto — troçou Dex. Interrompeu-se por um segundo. — Precisas de um médico?

— Não, só de um carro.

— O Sombra está no terreno agora, a tentar localizar os franco-atiradores. Se ainda estiverem cá, ele vai tomar conta deles.

Não podia ser mais verdade. Sombra ganhara aquela alcunha porque era precisamente isso: Uma sombra que ninguém conseguia detetar. Ninguém sabia que estava por perto até ser demasiado tarde.

— Boa ideia — murmurou Isaac. — Mas pede-lhe para ter cuidado. Há mais do que um. Os tiros procediam de, pelo menos, três fontes diferentes.

— Ele vai encarregar-se de tudo — tranquilizou-o Dex, confiante. — Estou mais preocupado com o teu estado.

— Estou bem — insistiu Isaac. — Mas não gosto de ser um alvo tão fácil.

— Vamos tirar-te daqui em breve. Relaxa e mantém-te em guarda. O Zeke e eu ficaremos contigo e o Sombra tomará conta de qualquer possível ameaça.

Mas o que preocupava Isaac era que ele não fora o alvo. O curso dos seus pensamentos parou de repente. Ou talvez tivesse sido? Os tiros não tinham sido para a mulher. Nenhuma bala atingira o carro que estava mais perto dela enquanto ele podia considerar-se sortudo por continuar inteiro. Aquilo não tivera nada a ver com ele, nem fora um tiroteio à sorte por parte de amadores. Fora uma tentativa de sequestro e ele quase se tornara um dano colateral. Queriam-no morto, mas queriam-na viva. E só tinham alcançado um dos seus objetivos.

Em qualquer caso, aquele anjo misterioso tinha um problema sério e Isaac não tencionava permitir que fugisse, indefesa, daqueles miseráveis que tinham deixado claro que não andavam com rodeios. Não tinha a menor ideia do que podiam querer dela, mas, enquanto tentava analisar as possíveis razões, passou a mão pelo peito, por aquele peito curado que não mostrava o menor indício de ter recebido um tiro. Aquele peito ileso podia oferecer-lhe uma ideia bastante acertada da razão por que um punhado de assassinos a fazia fugir, aterrada.

Se se conhecesse aquela habilidade, e apostaria até ao seu último dólar em como alguém conhecia aquele dom milagroso, quereriam ficar com ela. Eram muitos os que não parariam por nada para a ter sob controlo.

Merda!

Salvara-lhe a vida. E, mesmo que não tivesse sido assim, depois de ver aquela mulher tão pequena, tão frágil, ensanguentada e arroxeada, nada o impediria de mexer céu e terra até ter a certeza de que estava sempre protegida. Aquilo já era uma questão pessoal. Não era mais uma missão da DSS que podiam atribuir a uma equipa ou a outro dos seus membros. Ia protegê-la pessoalmente. E se Caleb, Beau ou Dane tivessem algum problema, podiam ir para o inferno. Apresentaria a sua demissão e encarregar-se-ia pessoalmente daquela missão.

— Que raio! — gritou Zeke, quando apareceu junto de Dex à frente de Isaac. — Disseste que não te tinham ferido. Precisas de uma ambulância e de ser levado para o hospital agora mesmo.

Isaac suspirou e limitou-se a abrir a camisa encharcada em sangue para que pudessem ver a sua pele intacta.

— Sim, sei o que parece, mas, se vos contar o que se passou, mesmo com todas as loucuras a que estão expostos por trabalhar para a DSS, levar-me-iam de rastos para o hospital psiquiátrico.

— Põe-nos à prova — disse Dex, com calma.

Isaac soprou e relatou tudo o que acontecera: Desde que vira a porta do todo-o-terreno aberta até quando recebera um tiro mortal no peito que uma mulher misteriosa curara.

E teve de lhes reconhecer o mérito por a única resposta visível ser um arqueamento de sobrancelhas.

— E deixaste que se fosse embora? Sem a proteger? Para que esses cretinos tentem disparar outra vez? — perguntou Zeke, com incredulidade.

— Mandei-a embora no carro — corrigiu Isaac, fulminando-o com o olhar. — Não estava em condições de me proteger e, muito menos, de a proteger e não podia fazê-la correr um risco tão grande quando sabia que estarias aqui numa questão de minutos.

Sombra apareceu do meio do nada. O seu sobrolho franzido indicava que ouvira a explicação toda. Algo por que Isaac se alegrou, porque não tinha vontade de a repetir.

— E isso vai servir para alguma coisa? — perguntou Zeke, com insistência.

Isaac abanou a cabeça devido à lentidão de Zeke para entender. Voltou a fulminá-lo com o olhar enquanto a irritação se apoderava dele.

— Levou o todo-o-terreno da empresa.

Então, nos olhos do seu companheiro de equipa, apareceu o brilho da compreensão.

— Vais procurá-la? — perguntou Sombra, desviando a raiva de que Zeke fora alvo por parte de Isaac para ele.

— Que tipo de pergunta é essa? — resmungou Isaac.

— Está bem. Então, quando tencionas ir procurá-la? — perguntou Dex.

— Agora — declarou, com impaciência. — Parecia que nem sequer sabia conduzir, portanto, não acho que seja muito difícil segui-la. Enquanto estamos aqui a perder tempo a discutir sobre estupidezes que poderiam esperar, podiam tê-la encontrado.

Zeke olhou para ele, preocupado.

— Não devias ir às urgências ou, pelo menos, à clínica privada que a DSS usa para te darem uma olhadela?

— E o que lhes conto? — Tinha a paciência no limite. — Que me deram um tiro no peito, no coração e nos pulmões? Que estava a sangrar como um porco e a sentir que morria até que, de repente, uma mulher misteriosa me pôs as mãos no peito e me curou? Que senti como a ferida se fechava de dentro para fora? Confia em mim, se algum médico me examinar, não encontrará nenhum vestígio da ferida.

Dex deixou escapar um assobio.

— Isto é uma loucura!

Isaac soprou.

— Depois de saber o que a Ramie, a Ari e a Gracie são capazes de fazer, já não devias surpreender-te com nada.

— Sim, homem, mas isto é diferente — indicou Sombra, num tom fraco. — Essa mulher salva as pessoas. Salvou-te quando estavas à beira da morte. Tu próprio o disseste. Chegaste a sentir que estavas a apagar-te, que estavas a morrer, mas, mesmo assim, agora ninguém poderia saber sequer que te feriram. Isto vai muito além dos poderes psíquicos das nossas esposas.

— Sim — confirmou Isaac, soprando —, finalmente, entendes. É por isso que tenho de a encontrar antes de os outros lhe porem as mãos em cima. Vai ter esse alvo nas costas durante toda a sua vida. É provável que já esteja a ter problemas. Agora que sei o que se passou e os motivos por que estava a tentar roubar-me o carro, faz mais sentido que tivesse a cara devastada e que estivesse vestida daquela forma. Nem sequer tinha sapatos, pelo amor de Deus!

A expressão de Zeke toldou-se ao ponto de ser perigosa.

— Não nos tinhas dito que lhe tinham batido.

As reações de Dex e de Sombra não foram menos coléricas.

— Ajudem-me a levantar-me e vamos pôr-nos a caminho de uma maldita vez. Temos de ativar o sistema de rastreamento do meu todo-o-terreno para saber onde está, até onde chegou ou se o carro ainda continua em andamento.

Embora não o dissessem, a expressão sombria dos seus rostos indicava que todos sabiam que, àquela altura, já podia estar com os seus perseguidores.

Capítulo 3

 

— Merda! — resmungou Isaac, do banco do passageiro.

Zeke conduzia e Sombra e Dex estavam sentados no banco traseiro do veículo. Ambos lhe prestavam toda a atenção e Zeke olhou para ele de esguelha.

— O que se passa?

— Não voltou a haver nenhum movimento desde a primeira vez que o localizei há alguns minutos.

Sombra encolheu os ombros.

— Talvez tenha parado para se esconder.

Isaac olhou para Sombra por cima do ombro.

— Dizes isso porque não a viste. Nunca tinha visto uns olhos que fossem o espelho da alma até olhar para os daquela mulher. E não acho que tenha parado de fugir desde que entrou no carro.

Zeke parecia pensativo.

— E, mesmo assim, parou para salvar o teu rabo triste.

Isaac suspirou e esfregou a cara.

— Sim, mas não entendo porquê. Nunca tinha visto uma mulher tão assustada em toda a minha vida e isso aborrece-me. Mas, mesmo assim, quando lhe disse para se ir embora, que não havia nenhuma esperança para mim porque estava a morrer, recusou-se a ir-se embora. E depois… meu Deus… Depois de me curar, estava a tremer porque sabia que, por minha causa, tinha renunciado à única possibilidade de fugir.

— É incrível… — murmurou Dex.

— Sim, a quem o dizes… — resmungou Isaac.

Porque o salvara? Normalmente, as pessoas só pensavam nelas próprias, mas ela arriscara tudo por ele. E parecia devastada pela tristeza por saber que estava a morrer.

Isaac queria saber a resposta para aquelas perguntas, mas, para a conseguir, tinha de encontrar aquela mulher.

— Então, onde está o teu carro? — perguntou Sombra. — Se não se mexeu, tem de ser fácil localizá-lo, não é?

Isaac mostrou-lhe o transmissor, mas escondeu o medo que oprimia o seu peito ao pensar no que iam encontrar. Ou no que não iam encontrar.

— A um quilómetro e meio — informou Zeke —, numa zona isolada. Pelo menos, teve a sensatez de conduzir até uma zona bastante afastada.

— Não acho que soubesse sequer para onde ia — replicou Isaac. — Nem sequer parecia saber conduzir. Nem ter idade para ter carta de condução.

— Que aspeto tinha? — perguntou Sombra, com curiosidade.

— O de um anjo — sussurrou Isaac. — Um anjo ensanguentado e ferido, mas um anjo muito belo. Tem os olhos mais azuis que vi na minha vida e o cabelo loiro e encaracolado. Meu Deus! Talvez tenha sido tudo uma alucinação e esteja a ficar louco.

— Garanto-te que não imaginaste que te deram um tiro e que te encontrámos no chão, deitado num charco do teu próprio sangue — resmungou Dex.

— Ali à frente — anunciou Zeke, num tom sombrio.

Ao ouvi-lo, os homens tiraram as armas. Zeke parou um segundo depois e saíram do carro, empunhando as pistolas.

— Vamos dividir-nos — propôs Isaac. — A julgar pelo que aparecia no localizador, tem de estar ali, mesmo na saída da estrada, perto do bosque. Zeke, vem comigo. Sombra, tu e o Dex vão dar a volta e aparecer à frente do carro.

Sombra e Dex entraram no bosque enquanto Isaac e Zeke empreendiam a rota mais direta para onde tinham localizado o todo-o-terreno. Mal estavam a entrar no bosque quando Isaac parou precipitadamente e fez um gesto a Zeke, apontando para o lugar onde o todo-o-terreno ficara estacionado de qualquer maneira numa zona coberta de arbustos, como se tivesse tentando atravessá-los para se esconder.

Isaac praguejou sem esquecer que fora a generosidade enorme daquela mulher e a sua disposição a arriscar tudo que evitara que, naquele momento, estivesse morto num charco de sangue. Não tencionava permitir que se defendesse sozinha. Assim que a tivesse ao seu lado, estava disposto a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para fazer com que se abrisse com ele. E certificar-se-ia de que nunca mais voltava a correr um risco como aquele.

Avançou silenciosamente para o veículo. Zeke protegia-o. Quando espreitou para o banco da frente, o coração afundou-se no peito e acelerou. Bolas! Tê-la-iam encontrado? Contudo, então, olhou para o banco de trás e o seu alívio foi tal que quase perdeu a força nas pernas. Até conseguir vê-la por completo.

Estava encolhida, aninhada e, até a dormir, e parecia estar completamente rendida, havia rugas na sua testa e tremia e gemia. Ou estaria inconsciente?

Seria o culpado pelo seu estado? Salvar-lhe a vida tê-la-ia deixado tão cansada que não era capaz de se defender?

Quando viu as lágrimas silenciosas que caíam pelas suas faces, sentiu que se suavizava por dentro.

Zeke, não menos afetado, murmurou, mal-humorado:

— Merda! O que vamos fazer, Isaac?

— Vem comigo — respondeu Isaac, num tom que não admitia discussão. — Não tenciono deixá-la com esses miseráveis. Só Deus sabe o que lhe fizeram antes de conseguir fugir.

A expressão de Zeke tornou-se turbulenta.

— Poderíamos dar-lhe proteção durante vinte e quatro horas por dia.

— Vem comigo — resmungou Isaac.

— O Dane quererá um relatório completo e suponho que terá alguma coisa a dizer.

— Não estou preocupado com o Dane. É minha. Isto não tem nada a ver com ele. Nem sequer é uma cliente. Além disso, serei eu a decidir o que faremos.

Zeke arqueou as sobrancelhas, mas teve a sensatez de não continuar a pressionar.

Isaac abriu a porta de trás com cuidado. Não queria acordá-la com um barulho repentino. Já suportara demasiado medo e nervos. Queria acabar com aquele inferno o quanto antes. Mas também sabia que não era uma mulher que confiaria facilmente. Teria de ser paciente e extremamente delicado com ela.

Hesitou por um instante quando estava prestes a tocar nela e fixou o olhar no seu corpo aninhado. Parecia tão frágil que tinha medo de lhe tocar. As suas mãos pareciam-lhe enormes comparadas com as mãos e os braços dela, com os seus ossos. E se a magoasse de forma involuntária? Mas não ia permitir que fosse outro a pegar nela ao colo.

Sustendo a respiração, pousou a mão no seu braço, tentando verificar o seu grau de consciência. Mas não devia ter-se preocupado. Não se mexeu. Era evidente que ultrapassara os seus próprios limites e estava cansada. A culpa voltou a espalhar-se pelas suas veias.

Aquela mulher era um maldito milagre. Ainda estava intumescido e parecia-lhe incrível estar ali, inteiro, sem nenhum sinal de ter levado um tiro, em vez de estar na morgue, onde os seus colegas teriam tido de enfrentar a tarefa desgraçada de identificar o seu cadáver.

Consciente de que tinha de se apressar, deslizou a outra mão por baixo do seu corpo e afastou a que apoiara no seu braço para a pôr por baixo das pernas. Levantou-a sem fazer o menor esforço e começou a regressar ao seu veículo, atento à respiração dela, ao menor movimento e a qualquer mudança de expressão.

Ela continuava sem dar nenhuma demonstração de acordar. Aquilo aliviou-o e preocupou-o ao mesmo tempo. Segurando-a muito perto do peito, tão perto que quase conseguia sentir os batimentos de ambos os corações, caminhou a passos largos para o carro enquanto dava ordens aos seus colegas de equipa.

— Livrem-se do todo-o-terreno e desativem o localizador. Por mim, seria melhor destruí-lo, mas sei que o Beau ficaria furioso. De qualquer forma, façam-no desaparecer durante algum tempo. Quando tudo isto acabar, alguém poderá vir buscá-lo.

Quando tudo isto acabar. Era uma declaração de intenções. Sabendo o pouco que sabia, quase nada, sobre a situação em que se encontrava, ter alguma ideia de quando ia acabar era a menor das suas preocupações. Mas estar a par do que precisava de saber para a manter a salvo e protegê-la contra qualquer mal? Aquela era a prioridade. Salvara-lhe a vida sem saber nada dele, exceto que estava a morrer a apenas alguns centímetros dela. Por nada do mundo ia permitir que sofresse ou continuasse a viver com medo.

— O que queres fazer, Isaac? — perguntou Sombra, enquanto Isaac deixava a mulher no banco de trás do todo-o-terreno com extrema delicadeza.

Assim que considerou que a deixava o mais confortável possível, Isaac virou-se e descobriu os seus três colegas atrás dele, com uma expressão preocupada e interrogante.

Por muito que odiasse a ideia de deixar aquela mulher que considerava sua — mesmo sabendo que era absurdo pensar que lhe pertencia, que era a sua responsabilidade e ninguém senão ele devia protegê-la —, sabia que não podia desaparecer sem dar uma explicação a Dane e a Beau. Passou a mão pelo cabelo e praguejou. Depois, fulminou os três homens com o seu olhar intenso.

— Tenho de ir informar o Dane e o Beau do que se passou e de que vou pedir uma licença durante algum tempo. Preciso que a levem para minha casa e tranquem a porta. Não quero que a percam de vista nem um só segundo. Espero que se certifiquem de que não lhe acontece nada. Regressarei o mais depressa possível, mas preciso que façam isto por mim.

— Sabes que faremos tudo o que precisares — redarguiu Zeke, num tom fraco. — E até mais. Não devias tratar deste assunto sozinho. Nós não trabalhamos assim e sabes.

— Mas esta não é uma missão oficial — começou a dizer Isaac.

— Cala a boca! — exclamou Dex, com rudeza. — Já sabemos que não estamos a trabalhar para a DSS há tanto tempo como tu e os outros. Somos os últimos contratados. Mas já lá estamos há tempo suficiente para saber que isto não funciona assim. Somos uma equipa, uma família e isso significa que não vamos deixar-te sozinho, mesmo que esta não seja uma missão oficial. Portanto, vais ter de aguentar. Não posso falar pelos outros, mas podes contar comigo para o que quiseres. Vou apoiar-te e fazer o que precisares. A única coisa que tens de fazer é pedir-me.

Zeke e Sombra não disseram nada, mas as suas expressões diziam tudo. Eles também não iam a lado nenhum.

Isaac deixou escapar um suspiro de alívio.

— Obrigado. Agradeço-vos realmente. E, agora, vamos. Preciso que a levem para minha casa. Quero que um de vocês esteja sempre ao lado dela. Não quero que acorde sozinha e assustada. Os outros dois explorarão a zona para se certificar de que não há ninguém por lá. Não estarei muito tempo nos escritórios. Vemo-nos em minha casa o mais depressa possível.

— Não te preocupes — tranquilizou-o Zeke. — Não deixaremos que se aproximem dela, Isaac. Juro-to pela minha vida.

Isaac ergueu o queixo.

— Nunca duvidei. O Dane só contrata os melhores, portanto, se não soubesse que posso confiar em vocês, o mero facto de ele vos ter contratado e de vos ter dado a sua aprovação seria suficiente para vos confiar a minha vida e a dela.

Dex deu-lhe as chaves do outro todo-o-terreno e Isaac lançou um último olhar à mulher que o salvara com um milagre. Odiava deixá-la, mesmo que fosse por tão pouco tempo, mas não tinha outra opção.

Cerrou o punho à volta das chaves e obrigou-se a virar-se e a começar a dirigir-se para o carro.

— Mantenham-me informado — pediu, virando-se por um instante. — Quero saber se acordar e como está. — Depois, respirou fundo e olhou para os colegas sem se importar com o que podiam descobrir pelo seu tom ou pela sua expressão. — Mantenham-na a salvo por mim — sussurrou.

— Sabes que o faremos — prometeu Dex, num tom fraco. — E, agora, vai-te embora para que possas voltar depressa para ela.