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Editado por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2003 Ruth Ryan Langan

© 2014 Harlequin Ibérica, S.A.

A magia e u cavaleiro, n.º 87 - Junho 2014

Título original: The Knight and the Seer

Publicado originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

Publicado em português em 2005

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimentos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

® e ™ são marcas registadas por Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas em que aparece ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-5200-6

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

Prólogo

 

Reino Mítico, 1552

 

– Agora, fica aqui, Jeremy.

Gwenellen, do clã Drummond, com nove anos, ajudou o pequeno duende a subir para uma pedra plana antes de dar vários passos para trás. A menina tinha o aspecto de um duendezinho, com caracóis dourados bonitos e enredados a cair pelas costas e olhos risonhos da cor do mel.

– Tens que estender as mãos assim – prosseguiu, levantando as mãos com as palmas para cima. Esperou que o duende fizesse o mesmo gesto, – para que nenhuma das flores que te vou enviar caia.

Ao captar o olhar de incredulidade que as suas duas irmãs mais velhas trocaram, Kylia e Allegra, que também ali estavam, a pequena suspirou.

– Sei o que estão a pensar. Só porque fiz alguns... passos em falso antes, acham que nunca vou conseguir fazer com que os meus feitiços funcionem. No entanto, desta vez, vou provar-vos que estão enganadas.

– E se não conseguires provar?

Allegra era a mais velha das três irmãs. Tinha treze anos, o cabelo da cor do fogo e olhos verdes que reflectiam uma profunda diversão enquanto observavam o duende que, embelezado com a sua cartola e a sua casaca, parecia desejar estar em qualquer outro sítio menos ali, sendo o objecto das experiências das três irmãs.

– O pobre Jeremy sairá a voar pelos ares ou cairá num poço – acrescentou.

– Sim – disse Kylia, que era um ano mais nova que Allegra, com o seu cabelo preto como o azeviche e olhos da cor da lavanda. – Ou, então, ficará pendurado no alto da copa de uma árvore. E tudo por causa dos teus passos em falso.

O rosto de Gwenellen corou ao ouvir as menções que as suas irmãs faziam dos seus muitos acidentes. A pequena era o desespero e o gozo das mais velhas. Apesar dos seus muitos fracassos, nunca tinha duvidado de que algum dia dominaria as habilidades necessárias para ser uma bruxa como a sua mãe, a sua avó e as suas irmãs.

Jeremy, o duende, não era mais alto do que uma criança pequena. A sua cabeça mal chegava aos ombros das três irmãs. Afirmava que tinha vivido no mundo real durante mais de cem anos antes de fazer do Reino Mítico o seu lar, ao lado das três irmãs, da avó e da mãe destas. Desde o começo, sentira uma especial fraqueza por Gwenellen. A natureza doce da menina fazia com que Jeremy a amasse, apesar das suas imperfeições. Embora o duende não fosse conhecido pela sua paciência, tinha mostrado um grau impressionante de contenção enquanto a menina praticava os seus esconjuros e feitiços, usualmente com resultados desastrosos.

– Nunca foi ferido – disse Gwenellen, enquanto lançava um olhar suplicante ao duende. – Diz-lhe, Jeremy. Nenhum dos meus erros te feriu, pois não?

– Até agora – repôs o duende, com uma voz que parecia o coaxar de uma rã, – mas tem cuidado, minha pequena amiga. Desta vez, preferia as pétalas aos espinhos.

– Sim. Vou ter isso em conta – replicou Gwenellen. Em seguida, dedicou às suas irmãs um olhar altivo. – Agora mesmo vamos ver quem é capaz de conjurar as rosas mais bonitas de toda a terra.

Gwenellen afastou o cabelo do rosto e levantou os braços para o céu antes de adoptar um ar de profunda concentração. Então, começou a entoar as palavras antigas. Embora tivesse parado várias vezes, quando a sua língua entaramelava com alguma palavra ou frase pouco familiar, prosseguiu com tenacidade até que, no fim, entoou triunfantemente:

– Rogo-te, faz com que caia em cima dela, e à sua volta, a mais bela flor.

Uma única nuvem escura colocou-se sobre eles, seguida do rugir dos trovões. Ao ouvir o estrondo, a mãe das raparigas, Nola, e Wilona, a avó acudiram às crianças. As duas atravessaram rapidamente a pradaria, seguidas de Bessie, a velha corcunda que também fazia parte da família. Todos olharam para o céu, expectantes, e viram como a nuvem se abria e derramava os seus conteúdos por cima de Jeremy.

Em vez de flores, observaram como um pó branco se acumulava à volta dos pés do pobre duende, como manchava o seu chapéu, cobria as suas roupas e lhe provocava espirros muito fortes.

Gwenellen permaneceu completamente imóvel, enquanto os outros se aproximavam pressurosamente de Jeremy para começar a sacudir-lhe o pó. Enquanto o faziam, Allegra e Kylia desataram a rir.

– Parece-vos divertido? – perguntou o pequeno duende, com o rosto tão corado e sombrio como a tempestade que acabava de desaparecer.

– Não é de ti que rimos, Jeremy – respondeu Allegra. Tocou no pó e saboreou-o para, de seguida, cair sobre a erva com um ataque de riso. – É que Gwenellen esteve tão perto desta vez...

– Perto? – quis saber a pequena, que estava prestes a chorar. – Como podes dizer isso? O que eu queria eram rosas.

– Não disseste rosas, mas sim que caísse em cima dele e à volta a mais bela flor. Pediste que caísse uma flor e o que conseguiste foi... – disse Allegra. Quase não podia falar com as gargalhadas –... foi farinha. Farinha fina e bem moída, como pólen.

As duas raparigas continuaram a rir-se enquanto Jeremy observava, muito aborrecido, o seu chapéu e a sua casaca, ambos cobertos de farinha branca.

Quanto a Gwenellen, deixou-se cair sobre a erva e apoiou o queixo nos punhos, tentando reprimir as lágrimas.

Quando os outros se foram embora, Wilona sentou-se ao lado da sua neta. Nola, no entanto, estava de pé, com as mãos nas ancas, observando-as muito atentamente.

– Outro erro, querida menina?

Gwenellen assentiu.

– Estes feitiços são tão fáceis para vocês, avó... Por que é que para mim são tão difíceis?

A anciã apertou a sua neta nos seus braços e deu-lhe um beijo na cabeça.

– Só precisas de tempo para descobrir os teus dons, Gwenellen.

– Sim. Foi isso que o meu pai me disse.

– O teu pai? – perguntou Wilona, surpreendida. Rapidamente, olhou para Nola. – Quando é que falou contigo?

– Ontem à noite. Tinha problemas para adormecer por... por causa do pequeno acidente de ontem – respondeu. Recusava-se a aceitar que os seus feitiços só dessem em enganos e insistia que só se tratavam de erros de cálculo.

Wilona pensou em Jeremy, pobrezinho, que naquele momento se lavava no fundo do poço, enquanto gritava, a plenos pulmões, que o libertassem das tentativas de Gwenellen. A denominação que ele teria dado ao resultado dos feitiços da menina teria sido «catástrofe».

– Tens a certeza de que se tratava do teu pai, minha querida?

– Sim – afirmou Gwenellen. – Parecia tão alto e tão bonito, com a sua manta sobre um ombro e o brilho de uma adaga adornada com pedras lindíssimas que tinha à cintura.

Nola caiu de joelhos e tocou suavemente no braço da sua filha com uma mão. Falou com uma forte urgência reflectida na voz.

– De que cor eram as jóias?

– Vermelhas muito escuras, da cor do sangue, mamã, à excepção da do centro, que era tão verde como os olhos de Allegra – respondeu a menina. Então, voltou-se para a sua avó. – Além disso, sobre a testa caía-lhe uma madeixa de cabelo assim – acrescentou, enquanto tocava na testa da idosa com um dedo.

As duas mulheres ficaram imóveis. Gwenellen acabava de descrever perfeitamente o seu pai, apesar de nunca o ter visto. Ele tinha morrido antes de a menina nascer. Era um mortal que desafiara o seu clã para se casar com Nola, mesmo sabendo que ela possuía poderes que eram desprezados pelos seus. A união de Nola e do seu marido fora puramente por amor e, até ao dia da sua morte, ele conseguira fazer a sua esposa incrivelmente feliz.

– O que te disse o teu pai?

O sorriso voltou a reflectir-se no rosto de Gwenellen.

– Disse-me que tinha um dom muito especial que mais ninguém no Reino Mítico possuía. Disse-me que não o podia usar aqui, mas não me explicou porquê. No entanto, contou-me que, quando eu abandonar o nosso reino para ir para o mundo dos mortais, ele irá proteger-me – continuou. – O que se passa, avó? – acrescentou, ao ver como Wilona a observava. – O que é que se passa?

A idosa acariciou suavemente o cabelo da sua neta mais nova.

– Não faz mal, querida menina. O teu pai tem razão. O teu dom é efectivamente muito especial. Um dia, no mundo dos mortais, descobrirás como é importante. Agora, vai fazer as pazes com Jeremy.

Quando Gwenellen se afastou, Wilona levantou-se.

– Sabes o que isto significa, não sabes, minha filha?

Nola não parecia muito disposta a admiti-lo.

– Não é de estranhar que o seu dom não seja aparente aqui, no Reino Mítico. Aqui não há sepulturas.

– Sim, mas no outro mundo, poderá falar com os mortos.

– É um dom excepcional e muito valioso.

A anciã parecia pensativa.

– Um dom que é mal interpretado com muita frequência – acrescentou.

– Devemos protegê-la para evitar que abandone o Reino Mítico.

Com um suspiro, Wilona apertou a sua filha entre os seus braços.

– É impossível protegê-la do mundo, minha filha. O que deves fazer é encontrar a força necessária para sobreviver se alguma vez partir daqui.

O objecto da sua conversa atravessava a pradaria, a correr, para ir à procura do seu companheiro de brincadeiras.

Gwenellen precisava de praticar muito, antes que se pudesse considerar uma bruxa, como as suas irmãs. No entanto, jurou que, mais cedo ou mais tarde, o conseguiria. Só tinha que se esforçar um pouco mais... e arranjar maneira o de se reconciliar com Jeremy até conseguir os seus objectivos.

Um

 

Reino Mítico, 1561

 

– Calma – disse Nola Drummond, enquanto tocava na sua filha mais nova, Gwenellen, que jazia deitada sobre a urze com aspecto assustado.

Ver como a sua filha caía do céu tinha acelerado o coração de Nola, como um cavalo desbocado. Não era nada novo. Passara os últimos dezoito anos da sua vida a preocupar-se com o espírito selvagem da sua filha, que parecia estar sempre a metê-la em confusões. No entanto, cada vez que isso acontecia, parecia que o seu coração morria um pouco.

– Deixa-me tratar dos teus cortes primeiro, filha. Foi uma queda muito grave.

– Sim – gemeu Gwenellen. Tentou levantar-se, mas quando tudo começou a andar à roda, à sua volta, deixou-se cair outra vez sobre as plantas e permitiu que a sua mãe usasse os seus dotes de cura. – Estava a atravessar umas nuvens, em cima de Estrela de Luz quando... quando senti que caía no vazio – acrescentou, enquanto observava o seu cavalo alado, que mordiscava a erva muito perto dali.

– Não estaria relacionado com o facto de estares a tentar ganhar outra corrida a Jeremy, pois não?

Gwenellen viu que o pequeno duende tinha que correr para acompanhar o passo de Wilona, que estava a atravessar a pradaria naquele momento, com um gesto de preocupação no rosto.

– Estás ferida, minha filha? – perguntou Wilona. Afastou o cabelo do rosto e começou a examinar as feridas da sua neta. – Jeremy disse-me que caíste do cavalo quando voavam pelo céu.

– Estava a experimentar um feitiço novo que lhe permitisse voar – disse Jeremy, com voz aguda e nervosa. – Já funcionou uma vez e Gwenellen tinha a certeza de que voltaria a funcionar.

– A certeza... Tu tens sempre a certeza – sussurrou Nola. Havia um matiz novo no tom da sua voz. Não era apenas acusador, possuía mais qualquer coisa, que parecia surgir do interior mais profundo do seu ser. Terror? Desespero? Olhou fixamente para a sua filha mais nova. – De uma coisa podes ter a certeza. Os teus erros nos feitiços podem trazer-te problemas muito graves.

Como sempre, Wilona tentou aliviar tensões entre a sua filha e a sua neta.

– Bom, parece que não se magoou. Eu só vejo uns cortes e uns hematomas sem importância.

– Vês, mãe? – replicou Gwenellen. Levantou-se com muito cuidado, esperando que o mundo deixasse de andar à roda.

– Poderias ter morrido – insistiu Nola, levantando-se também e sacudindo as saias. – Quando vais aprender que não se podem correr tantos riscos sem pagar um preço? – perguntou-lhe. Então, voltou-se e disse. – Jeremy, tira a sela a Estrela de Luz. Gwenellen não vai voltar a montá-lo hoje.

Jeremy piscou um olho à sua amiga antes de se afastar para se ocupar dos cavalos. Quando Nola se foi embora, Gwenellen dirigiu-se a Wilona.

– A minha mãe está furiosa.

– Preocupa-se contigo.

– Oh, avó... Por que é que continuo a cometer estes erros tão estúpidos?

– Chama-se crescer, minha querida...

A anciã acariciou suavemente os caracóis dourados da sua neta que, naquele momento, se converteram numa mistura cheia de nós. Um cabelo dourado tão bonito, em profundo contraste com aqueles olhos cor de mel... Wilona tinha a certeza de que Gwenellen não sabia que tinha uma beleza perturbadora. Como haveria de saber? Não tinham espelhos, à excepção da superfície prateada do Lago Encantado, nem ninguém no Reino Mítico que pudesse ser reflexo da sua beleza.

– Eu nunca vou crescer. Olha para mim. Tenho dezoito anos e ainda não consigo curar feridas como Allegra, nem fazer feitiços como Kylia.

– Tu tens os teus próprios dons especiais, Gwenellen.

– Que dons? Oh! Referes-te a conseguir falar com o meu pai? Mas, de que serve isso?

– De que serve? Eu digo-te. No outro mundo...

– Não quero saber desse outro mundo. Neste, os meus feitiços correm mal a maioria das vezes – disse Gwenellen. Então, abanou a cabeça e fez com que os seus caracóis loiros abanassem. – Nem sequer consigo domar o meu cabelo – acrescentou. Cobriu o rosto com as mãos. – Nunca vou ser como a minha mãe, nem como tu, nem como Allegra ou Kylia.

– Isso é verdade, minha querida – afirmou Wilona. Levantou-se e fez com que a sua neta fizesse o mesmo, antes de a abraçar com força. – Tu nunca te parecerás com ninguém, apenas contigo mesma e é assim que deveria ser – prosseguiu, enquanto emoldurava o rosto da jovem com as suas mãos nodosas. – Ouve-me, Gwenellen. A vida é uma viagem. Às vezes, trata-se de uma aventura fantástica. Outras vezes, pode ser um desafio.

– A minha parece ser um constante desafio – lamentou-se Gwenellen.

– Não ligues. O que vemos como erros são simplesmente lições que devemos aprender enquanto viajamos por este mundo.

– Então, por que parece que eu tenho mais lições para aprender do que as minhas irmãs?

Wilona sorriu.

– Eu não tenho a resposta para essa pergunta, minha querida. No entanto, sei que tu és muito especial para mim e que, um dia, demonstrarás o teu valor, não só a ti mesma como também a alguém que significará mais para ti do que qualquer outra pessoa que tenhas conhecido até agora.

Gwenellen beijou o rosto da sua avó.

– Avó, sei que a tua intenção é consolar-me, sugerindo que um dia terei um homem que me ame como Merrick MacAndrew ama Allegra ou como Grant MacCallum ama Kylia. Contudo, não tenho intenção de me deixar seduzir por um homem mortal que me leve para a sua fortaleza das Terras Altas para eu me ocupar dos seus assuntos domésticos enquanto ele parte para a guerra. Prefiro a vida que levo aqui no Reino Mítico, com a minha mãe, com Jeremy, com Bessie e contigo.

– Isso, minha querida, dizes tu agora, porque ainda não conheceste o homem que vai roubar-te o coração.

– Não penso deixar que ninguém me roube o coração – afirmou. – No entanto, ficaria muito contente, se arranjasse um bom feitiço. Um feitiço que funcionasse de cada vez que o usasse.

– Diz um, minha querida.

Gwenellen pensou durante um momento antes de responder.

– Um feitiço que me permita voar.

– E que necessidade tens tu de voar, quando tens Estrela de Luz para te levar onde tu quiseres?

– Estrela de Luz só pode levar-me até ao céu e devolver-me à terra. A minha mãe e tu podem viajar para onde desejarem, apenas com o pensamento.

Wilona desatou a rir.

– Minha querida, levámos uma vida inteira a aprender a viajar como o fazemos. Tem paciência. Com o tempo, tu também poderás fazê-lo. De facto, provavelmente, acontecerá mais depressa do que esperas. Bom – disse Wilona, enquanto se virava. – Prometi a Bessie que faria uns pãezinhos para acompanhar o guisado que ela está a preparar.

Começou a afastar-se da sua neta, mas então parou e virou-se.

– Penso que a tua mãe gostaria muito que tu e Jeremy fossem colher algumas bagas ao bosque para a sobremesa.

Gwenellen assentiu.

– Penso que o que queres dizer é que nos ajudaria muito a fazer as pazes.

Wilona sorriu.

– Sim, penso que ajudaria.

– Muito bem – respondeu Gwenellen. – Diz a Bessie que bata as nata para acompanhar as bagas.

 

 

– Toma, Jeremy – disse Gwenellen. – Entregou uma cesta ao pequeno duende e apontou para uns arbustos que estavam completamente carregados de frutos. Davam umas bagas que eram únicas no Reino Mítico e que eram tão doces como a cereja, tão ácidas como a framboesa e que não tinham nem caroços nem sementes. – Tu encarregas-te das que crescem nos ramos mais baixos e eu apanharei as dos mais altos.

Colheu as bagas em silêncio, durante alguns minutos. Finalmente, enquanto comia alguns dos frutos que tinha colhido, Jeremy dirigiu-se para a sua amiga.

– Tens a certeza de que te sentes bem, Gwenellen?

– Estou bem. A única coisa que foi ferida foi o meu orgulho.

– És uma bruxa tão boa como as tuas irmãs, mas és demasiado ambiciosa. Devias aceitar os dons que tens e não te preocupares com os outros.

– Pareces-te com a minha avó – comentou Gwenellen, entre gargalhadas. – Ela diz que eu posso falar com os mortos. Talvez esse seja um bom dom, mas não há mortos aqui no nosso reino – explicou, enquanto arrancava umas bagas perfeitas. – A minha avó diz que devo continuar a tentar encontrar os meus outros dons, porque, cada erro é simplesmente outra lição.

– Se isso é verdade, já deverias ser perfeita.

– Sim – repôs Gwenellen. Tinha gostado da brincadeira de Jeremy, por isso, a sua gargalhada ressoou no ar, tão clara como um sino. Em seguida, ficou muito séria. – Talvez esteja a esforçar-me demasiado. Talvez a resposta seja relaxar um pouco mais e brincar com uma variedade mais ampla de feitiços sem me preocupar com o resultado.

– Por que não? – perguntou o pequeno duende, – vale a pena tentar. Queres começar agora com alguma coisa leve?

Gwenellen olhou à sua volta. Ao ver que as bagas mais suculentas estavam no alto do arbusto, sorriu.

– Penso que voltarei a tentar o feitiço de voar. Além disso, desta vez, se falhar, não cairei de tão alto.

Agarrou bem na cesta e estendeu os braços. Em seguida, fechou os olhos e começou a entoar os cânticos antigos. Com cada frase, o ar ia-se tornando mais leve, mais quente. Os pássaros e os insectos ficaram em silêncio à medida que as nuvens começaram a cobrir o céu.

Gwenellen sentiu uma repentina rajada de ar que lhe levantava as saias e a levantava do chão. Era a sensação mais agradável do mundo quando um feitiço corria tal como se esperava...

Abriu os olhos, decidida a apanhar as bagas que tinha visto nos ramos mais altos dos arbustos. Então, horrorizada, descobriu que estava já tão longe da terra que o Reino Mítico não era mais do que um ponto da paisagem que avistava.

– Oh, não. Isto não serve.

Fechou os olhos e repetiu o cântico, invertendo a ordem das palavras com a esperança de poder voltar a começar. No entanto, quando voltou a abrir os olhos, viu campos e bosques, montanhas e rios que se mexiam lá em baixo, tão rapidamente que começou a ficar tonta.

Em que se tinha enganado? Repetiu mentalmente o cântico com a esperança de encontrar as palavras que a ajudassem a quebrar o feitiço.

Precisava de regressar ao seu lar.

Para não ficar tonta, fechou os olhos e concentrou toda a sua energia no seu lar e na sua família. Visualizou cada um dos que residiam no Reino Mítico. A sua mãe, a trabalhar no tear, a tecer um tecido bonito que os mortais nunca tinham visto e tão delicado que poderia ter sido fabricado pelos anjos. A sua avó tirava biscoitos dourados do forno e barrava-os com manteiga fresca e mel que acabava de ser extraído do favo. A velha Bessie, com um avental sujo apertado à sua cintura larga e com a colher de pau na mão mexia um guisado delicioso numa panela enegrecida. E Jeremy, que estaria, provavelmente, naquele momento, a correr para casa tão rápido quanto as suas pernas curtas o permitissem para relatar as notícias da última falha de Gwenellen.

«Meu Deus. Neste momento, já todos saberão que fracassei uma vez mais», pensou.

Talvez se tentasse concentrar-se, conseguisse regressar antes que a sua mãe tivesse tempo para ficar preocupada.

De repente, como por artes mágicas, sentiu que começava a descer. Com um sorriso, abriu os olhos mesmo a tempo para ver que estava a aproximar-se do chão. Daquela vez, em vez de cair numa urze, planou até chegar ao chão e aterrou sem dificuldade.

– Bom, correu muito melhor.

Olhou à sua volta para procurar Jeremy. No entanto, em vez dos arbustos, encontrou-se entre as ruínas fumegantes do que parecia uma fortaleza. Estava rodeada de móveis e tapeçarias completamente abrasadas.

O odor do fumo e da morte rodeava-a por todo o lado e enchia-lhe os pulmões.

Começou a tossir e a sentir náuseas. Quando, finalmente, conseguiu recompor-se, ergueu-se e, depois de ouvir uns passos, voltou-se.

Encontrou-se a olhar para os olhos de um homem cujos traços estavam distorcidos pela fúria. Na mão, trazia uma espada que levantou até conseguir apontar directamente para o coração de Gwenellen.

– Ah! Vejo que um dos seus a abandonou – gritou, com voz enfurecida. – Prepara-te para morrer, mulher.